São Francisco e Nossa Senhora protegem a imagem de um menino abraçado à avó, no altar montado na sala. Na foto emoldurada, João Vitor tem o sorriso de uma criança amada. Quando olha para aquele retrato, Duda sente-se bem. João e Duda são partes da mesma pessoa.
Duda, 12 anos, é aluna do sétimo ano, adora livros, Harry Potter, maquiagem, fala articuladamente, emite opiniões sobre política, dança balé e é também uma menina em transição de gênero. Nasceu em corpo biologicamente masculino, chamava-se João Vitor, mas nunca se identificou como menino.
“O João Vitor sempre vai estar em mim, mas nunca vai ser tão forte quanto a Duda. Todo mundo tem um lado oposto, ele é o meu”, diz com uma autoconfiança rara para alguém de sua idade.
Ela é a filha caçula do que alguns chamariam de tradicional família brasileira: os pais são católicos, professores, com três filhos, donos de uma casa confortável com quintal, piscina e cachorros.
Para muitos a presença de Duda seria o ponto fora do foco nessa imagem. A família, porém, fez da descoberta da transexualidade uma chance de reafirmar seu amor e apoio incondicionais.
Ao perceber-se transgênero, Duda começou acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Em uma das sessões, a psicóloga questionou: “Você já teve vontade de morrer por causa disso?”. Ao que ela respondeu: sim.
“Aquilo cortou o meu coração de uma maneira difícil de explicar. Assumimos o compromisso de fazer com que a Duda nunca mais se sentisse assim”, lembra a mãe, Patrícia Maia Gomes Pereira, 48 anos.
O pai, Eberson Chaves Pereira, é lutador e professor de capoeira. “Muita gente esperava de mim uma reação diferente da que tive ao aceitar tudo com naturalidade. Me lembrei de quando a Duda nasceu e abriu os olhos para me olhar. Amor se paga com amor”, relata Eberson.
Os irmãos de Duda completam o ambiente de acolhimento. “Meu pai mostrou que tem o maior coração de todos. A Duda nos ensinou muito sobre respeito. Ela nunca se escondeu e temos orgulho dela”, relata o irmão Erick, 20 anos. Ela ainda tem uma irmã, Iara, que é mais velha, casada e não mora mais com os pais.
Nesse clima de aceitação, Duda encontrou espaço para ser quem era. Aos 4 anos, disse à mãe que não era um menino e queria ser como ela. Aos 7, numa conversa com um primo que é médico, perguntou como deixar de ser João Vitor. Quis saber também se algum dia poderia ter um bebê. Ao ouvir que não, chorou.
“Algumas pessoas se recusam a acreditar que crianças transexuais existem. Falam em influência da televisão, dos pais, da mídia. Tenho dois outros filhos e só a Duda é trans. Ela nasceu assim. Não apoiá-la não mudaria isso”, explica Patrícia.
s pais perceberam que Duda era uma criança atípica quando ela ainda era um bebê. Eles notavam nela características femininas, mas pensavam que teriam um filho homossexual. Uma coordenadora de escola chegou a sugerir que o pai participasse mais ativamente da vida do filho para “resolver” a questão. “Desde muito cedo, quando a Duda ainda era bebê, nós víamos quem ela era. Nos preparamos para entender, dar apoio, para ela ser feliz”, diz Eberson.
Na escola, graças a uma resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE), publicada em janeiro de 2018, Duda usa seu nome social — Maria Eduarda –, o que diminuiu o bullying sofrido por ela.
Agora, a família lutará na Justiça para mudar o nome e o gênero da menina na certidão de nascimento. Há somente um caso conhecido no Brasil em que o juiz decidiu favoravelmente a esse tipo de pedido, o de uma menina de 9 anos, no Mato Grosso. Na decisão, o juiz Anderson Candiotto afirma:
“A personalidade da criança, seu comportamento e aparência remetem, imprescindivelmente, ao gênero oposto de que biologicamente possui, conforme se pode observar em todas as avaliações psicológicas e laudos proferidos pelo Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, do Instituto de Psiquiatria, do Hospital das Clínicas de São Paulo, evidenciando a preocupação dos pais em buscar as melhores condições de vida para a criança”.
O nascimento de Duda
Duda passou a usar vestidos primeiro só em casa, depois nos passeios e no colégio. Deixou o cabelo crescer e mudou oficialmente de nome no fim de 2017. Em uma conversa com a mãe, quis saber como ela se chamaria se tivesse nascido biologicamente mulher. Patrícia afirmou que seria Maria Eduarda e a menina abraçou a opção.
“Fizemos tudo aos poucos, passo a passo. Nunca quis ser uma pessoa padrão, sou diferenciada. Quero que todo mundo me veja como eu sou. Gosto de falar para as pessoas, de dar opinião e não ligo para as coisas ruins que falam de mim”, afirma Duda. A menina atribui aos pais a firmeza ao lidar com as adversidades. “Eles disseram que seria muito difícil, mas que juntos a gente ia conseguir.”
Maria Eduarda faz parte de um universo crescente, o de pessoas que na infância começam esse processo de transição. A partir dos 12 anos, pode ser feito o bloqueio hormonal, para que o corpo não desenvolva as características indesejadas como barba e seios.
Aos 16, após avaliação médica, inicia-se a administração de hormônios femininos ou masculinos, com aprovação do Conselho Federal de Medicina (CFM) baseada em estudos internacionais que constataram a manutenção da incongruência de gênero na vida adulta em todos os avaliados.
No Brasil, um a cada 30 mil homens e 1 entre 100 mil mulheres são transexuais. Somente após os 21 anos é possível passar por uma cirurgia de redesignação sexual, popularmente chamada de mudança de sexo.
Cerca de 350 menores de 18 anos já passaram pela triagem do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) do Hospital das Clínicas de São Paulo, referência no cu
idado de jovens transexuais, onde Duda faz o acompanhamento.
Rede de apoio contra a violência
Uma equipe formada por médicos, psicólogos, assistente social, fonoaudiólogos e outros profissionais presta o serviço. “Nós fazemos avaliações cuidadosas para efetivar a incongruência ou saber se é apenas um encantamento por aquele universo”, explica o coordenador do projeto Alexandre Saadeh.
Atualmente, 82 crianças e adolescentes são atendidos no local. Há outras 132 pessoas na fila de espera. O Amtigos foi alvo de várias críticas e tentativas de desmonte. “Fui chamado de anticristo, ameaçado. Essas crianças sofrem, não dá para negar a existência delas. Cada história nos emociona, a vida delas muda para muito melhor com esse acompanhamento”, afirma Saadeh.
Evitamos que essa criança se considere um monstro, uma aberração. Queremos adultos mais integrados e tranquilos para lidar com quem são“
O ambulatório não recebe verba estadual, apenas usa as instalações da universidade. Os recursos vêm principalmente de doadores e voluntários. Há quatro servidores que trabalham em horário parcial no projeto e 40 colaboradores não remunerados. A Unicamp e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) também oferecem esse tipo de auxílio a menores de 18 anos.
Em Brasília, o Adolescentro, na 605 Sul, presta orientação a esse público com psicólogo, assistente social e médicos, há 1 ano. É o único projeto no Brasil que não está vinculado a universidades. Cerca de 30 jovens participam e 10 deles estão em transição de gênero — os outros são homossexuais.
“O projeto com jovens em processo de transição surgiu porque havia muitas automutilações e tentativas de suicídio entre eles, muitos nem saíam de casa. É uma fase intensa de mudanças, que precisa de atenção”, esclarece a gerente do Adolescentro, Ana Paula Tuyama. A iniciativa ganhou recentemente um prêmio do Ministério da Saúde pela prática inovadora. Também funciona na capital do país o Ambulatório Trans, para maiores de 18 anos.
Criada a rede de apoio dentro do lar, a violência do lado de fora é a maior preocupação de Duda e sua família. O Brasil é o país que mais mata LBGTs no mundo, registrou 445 casos de assassinatos de homossexuais em 2017, segundo o levantamento do Grupo Gay da Bahia. A ONG Transgender Europe informou que, entre 2008 e junho de 2016, 868 travestis e transexuais perderam a vida de forma violenta em solo brasileiro.
Neste Dia das Crianças, Duda espera que outras crianças sejam acolhidas como ela foi. “Pessoas como eu precisam saber que estão no caminho certo e ajudar umas as outras”, diz. Para ela, amar também é uma forma de se defender.