Kobe Bryant inspirou uma legião de fãs por sua devoção maníaca ao basquete. Quase nada estava fora do alcance do norte-americano, que treinava obsessivamente e era capaz de pontuar até sem tendão de Aquiles.
Diego Maradona, por sua vez, jogava futebol sorrindo. Era com a alegria de um menino que o argentino batia na bola, encantador nas situações de mais alta pressão ou em um simples aquecimento.
No triste 2020 que também atingiu o esporte, sem torcida e sem alma na pandemia de Covid-19, as lágrimas rolaram na despedida das duas lendas. Kobe morreu em janeiro, aos 41 anos, em um acidente de helicóptero. Maradona partiu em novembro, aos 60, por problemas cardíacos e pulmonares.
Eles eram irremediavelmente diferentes em sua relação com o jogo e, ainda assim, parecidíssimos. Na cara de mau do craque do basquete e no semblante pueril do gênio do futebol estava um amor comum -e incomum- pela bola, olhos que por vezes desafiavam os limites vistos como normais pela sociedade.
Bryant beirava a psicopatia em sua preparação para entrar em quadra. Era tão normal para o ala-armador acordar às 4h para praticar movimentos de jogo ou ficar no ginásio executando centenas de arremessos após uma partida ruim que ele ficava genuinamente chocado quando seus companheiros não exibiam a mesma disposição.
Isso gerou atritos com colegas como Shaquille O’Neal, bem menos disposto à labuta do dia a dia, mas fez do atleta uma espécie de símbolo da capacidade de superar obstáculos. Não por acaso, a palavra “inspiração” foi muito mais recorrente do que a palavra “talento” nas homenagens póstumas ao ídolo, embora fosse extraordinário o talento do pentacampeão da NBA e bicampeão olímpico.
Os exemplos são tão numerosos quanto impressionantes. Há os inacreditáveis lances livres convertidos após a ruptura do tendão de Aquiles, em 2013, e as múltiplas lesões com que conviveu na campanha do título de 2010 com o Los Angeles Lakers -entre elas uma fratura no dedo indicador, que tornou necessária uma rápida e inverossímil alteração na técnica de lançamento.
Se um homem é tão grande quanto o número de pessoas em cuja alma ele consegue tocar, Kobe foi um Golias com maior impulsão. Talvez não haja retrato mais ilustrativo de seu legado do que a imagem do professor primário que fez os alunos escreverem seus maiores medos, amassarem o papel e o arremessarem na cesta de lixo gritando: “Kooobeee!”.
Maradona, à sua maneira, também foi gigantesco na capacidade de inspirar, mas seu estilo era bem diferente do de Bryant: um Davi gordinho, baixinho, que usou as armas à sua disposição para derrotar adversários poderosos.
A famosa “mão de Deus” foi uma delas, na Copa do Mundo de 1986. E a justificativa para o lance irregular na vitória da Argentina sobre a Inglaterra foi quase tão genial quanto sua execução, que vingava o povo de Diego de feridas ainda não cicatrizadas.
O camisa 10 alviceleste fez o gol de mão sorrindo, sorriu de novo em seguida ao enfileirar meio time inglês para marcar o segundo e continuou sorrindo até decidir aquele Mundial, com um passe preciso para Burruchaga contra a Alemanha. Era um menino em campo na final da Copa do Mundo, o mesmo menino cujos olhos brilhavam nas peladas na humilde Villa Fiorito, nos arredores de Buenos Aires.
Foi também esse garotinho que fez do Napoli uma potência europeia na segunda metade da década de 1980. Houve uma identificação imediata com o povo pobre do sul da Itália, cujo amor pelo jogador é comparável ao sentido pelos argentinos.
Era uma extensão do amor de criança que o craque sentia pela própria bola. Só ele foi capaz de fazer de um aquecimento, no caminho para a conquista da Copa da Uefa de 1989, um espetáculo mais memorável do que a própria partida subsequente.
Despreocupado com o jogo decisivo em Munique -no qual seria também decisivo-, Maradona começou a brincar com a bola no ritmo da música que era tocada nos alto-falantes do estádio Olímpico, em Munique. Chuteiras desamarradas, divertia-se ajustando seus movimentos ao som do hit “Live is Life”, da banda austríaca Opus.
O público passou a reagir, e o menino brincalhão se juntou ao adulto exibicionista que adorava os holofotes. O resultado, registrado em vídeo, ficou conhecido como “o maior aquecimento de todos os tempos”.
“Somos muito orgulhosos e muito gratos por esse vídeo. Ele mostra não apenas a categoria sem igual do Maradona nas embaixadinhas mas também sua diversão e seu contentamento com a vida, o que é perfeitamente apropriado à nossa música”, afirmou ao jornal Folha de S.Paulo Ewald “Sunny” Pfleger, compositor de “Live is Life”.
“A ideia básica da canção era que tocar nossa música ao vivo é a nossa vida. E jogar futebol era a vida dele”, acrescentou o guitarrista da Opus.
Ainda que a feição não fosse a mesma, o encanto pela bola era bem parecido com o de Bryant. O apelido Mamba e a disposição para destruir rivais como uma cobra venenosa não disfarçavam que Kobe era também o menino apaixonado pelo jogo.
Esse garotinho apareceu no curta-metragem “Dear Basketball” (“Querido Basquete”), versão animada da carta de aposentadoria do norte-americano. Como ele era aparentemente incapaz de realizar tarefas de maneira malfeita, o curta ganhou o Oscar.
Maradona não tinha esse perfeccionismo. Ao contrário, seu apelo estava ligado à própria imperfeição. Se Kobe era uma figura quase sobre-humana, Diego era só humano, do riso ao vício.
“Não importa o que você fez com sua vida, Diego. Importa o que você fez com as nossas”, dizia uma faixa exposta nos arredores da Casa Rosada, onde foi velado o camisa 10.
Houve muitas outras perdas em um 2020 de muitas lágrimas, e cada morte representa uma dor incomparável. Poucas vidas, porém, provocaram tanto impacto no público quanto as de Kobe Bryant e Diego Maradona.