Uma empresa de Porto Velho (RO) foi condenada por intolerância religiosa pela Justiça do Trabalho por ter permitido a realização de brincadeiras relacionadas ao Candomblé, religião professada por sua gerente, assim como pela punição por estar ela usando um colar de miçangas no ambiente de trabalho. A decisão é da 8ª Vara do Trabalho de Porto Velho que mandou indenizar a ex-trabalhadora no valor de R$5.100,00, além do pagamento de verbas trabalhistas.
Enquanto trabalhou na empresa, a ex-gerente foi alvo de memes e piadas depreciativas sobre sua religião. Em ocasiões em que adoecia, o empregador atribuía a causa ao fato de ela ser ‘macumbeira’. Além disso, o patrão chegou a negar-lhe a folga no feriado da Sexta-feira Santa, justificando que a funcionária não era católica.
“Brincadeiras”
Em sua defesa, a empresa reclamada não negou os fatos e acusações realizadas, mas afirmou que todo o relato da reclamante aconteceu com o intuito de fazer “brincadeiras”, expressão essa utilizada na contestação. Disse ainda que a ex-gerente “permitia brincadeiras com a sua religião” e de que tudo aconteceu em um ambiente saudável.
Sobre os fatos que envolveram a suspensão da ex-gerente pelo uso do colar de miçangas, a empresa alegou que a obreira “faltou com o respeito à sua própria religião, ao usar objetos ditos consagrados fora do ambiente da religião e com claro intuito de trazer impacto ao ambiente de trabalho” e que a punição foi necessária porque o então empregador não queria vincular a imagem do estabelecimento a uma determinada religião.
Preconceito recreativo e estereótipo de gênero
No seu julgamento, o titular da 8ª Vara do Trabalho de Porto Velho, juiz Antonio César Coelho, argumentou que a intolerância religiosa foi reconhecida ao identificar a existência do chamado preconceito recreativo e do estereótipo de gênero na conduta da empresa ré.
Ao se referir ao preconceito recreativo, o magistrado explica em sua sentença que “nesses cenários, enquanto um dos lados se entende como estando em um momento de pura diversão, o outro se encontra como alvo de depreciação por fatores históricos, étnicos e/ou religiosos, com ofensas livres e conscientemente dirigidas a tudo que ela tem como sagrado”.
Quanto ao estereótipo de gênero, o magistrado explica que se trata de um conjunto de ideias socialmente construídas, atribuídas a determinados grupos. “Assim como não se revela ofensivo ao senso comum ver uma mulher muçulmana vestindo um Hijab, ou mesmo uma indiana com adorno que faz referência ao terceiro olho; ou ainda um Judeu utilizando um Quipá, ou mesmo os povos originários ostentando Kene Kuin, também não deve ser motivo de reprimenda a utilização de um colar relacionado ao Candomblé por aqueles que professam tal religião”, ressaltou Antonio César ao deduzir que o problema central não estava na intenção de não vincular à imagem do empreendimento à religião de matriz africana, mas com fundamento à existência do estereótipo de gênero, o que afirmou seguindo as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Por fim, a empresa também foi condenada a pagar honorários advocatícios sucumbenciais ao(s) advogado(s) da reclamante. A sentença ainda cabe recurso.
Do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou recentemente o inovador Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, um documento que visa orientar magistrados em todo o Brasil na compreensão e aplicação de uma abordagem mais equitativa e justa em casos judiciais que envolvam questões de gênero. A iniciativa busca assegurar que estereótipos de gênero não influenciem as decisões judiciais, promovendo um judiciário mais sensível e apto a reconhecer desigualdades estruturais que afetam mulheres e outros grupos marginalizados.
O protocolo propõe um conjunto de diretrizes que incentivam a reflexão crítica sobre como as normas de gênero podem impactar as partes envolvidas em um processo legal. Entre os principais objetivos está a promoção de uma justiça que respeite e reconheça as diferentes realidades vividas por indivíduos, especialmente no que tange à discriminação e violência de gênero. A implementação dessas diretrizes é vista como um passo significativo para o fortalecimento dos direitos humanos no país, promovendo um sistema judiciário mais inclusivo e consciente das questões de gênero.
Esta publicação surge em um momento crucial, onde o debate sobre igualdade de gênero ganha cada vez mais destaque, refletindo um compromisso do CNJ em adaptar o sistema judiciário às necessidades contemporâneas e em consonância com padrões internacionais de direitos humanos.
(Processo n. 0000594-38.2024.5.14.0008)